A Escultura da Liberdade

Por: Alex Sandro Perez Santos – Teólogo

Havia, em um vale verdejante cercado por montanhas serenas, uma aldeia conhecida como Arandis. Era um lugar de campos férteis e bosques frutíferos, onde a maioria das pessoas vivia do cultivo da terra e do pastoreio de animais. O céu, ali, sempre parecia mais claro e amplo; a brisa era suave e refrescante, e a música dos riachos aproximava-se de um hino à vida. Apesar da beleza incontestável daquela terra, havia algo na atmosfera da aldeia que não era dito em voz alta: muitos moradores sentiam-se como pássaros em gaiolas invisíveis. A sociedade local, ainda que pacífica, seguia regras estritas de conduta, e a expectativa de se encaixar em padrões pré-definidos sobre como pensar, agir e sentir pesava sobre o espírito de cada um.

No centro de Arandis havia uma grande praça, e nela se erguia um velho carvalho, de tronco retorcido e raízes profundas. Sob suas folhas, havia sempre uma brisa calma, e contava-se que quem ali sentasse para ouvir o sussurro das folhas e o canto dos pássaros poderia receber insights sobre a própria vida. Naquele ambiente vivia um jovem chamado Elias. Ainda em seus vinte e poucos anos, Elias era conhecido por sua habilidade de esculpir madeira. Suas mãos, calejadas pelo trabalho, eram capazes de transformar tocos brutos em obras delicadas, cheias de vida e expressão. Contudo, ao contrário das estátuas e entalhes que criava, Elias não se sentia livre para esculpir a si mesmo conforme sua própria verdade. Havia um peso sobre seu peito: o medo do julgamento da comunidade e o receio de que, se expressasse suas ideias mais profundas, seria reprovado ou ridicularizado.

Elias vivia em uma casa simples, bem ao lado de um riacho cristalino. Quando menino, passava horas ouvindo as águas correrem e imaginando histórias sobre mundos além das montanhas. Contudo, ao crescer, aprendeu que deveria manter seus sonhos guardados, falar pouco e não contrariar as expectativas. Por vezes, quando tentava compartilhar uma ideia diferente, alguém o advertia: “Elias, não vá além do que se espera de você.” Assim, o jovem aprendeu a silenciar suas visões, a esconder sua voz interior. Longe do olhar alheio, no entanto, esculpia figuras expressivas, marcadas por gestos, rostos e posturas fora do comum. Aqueles entalhes representavam o que Elias não conseguia dizer em palavras.

Certo dia, enquanto trabalhava em uma nova escultura, ouviu o sussurro de uma voz anciã ao longe. Ao seguir o som, chegou ao velho carvalho no centro da aldeia. Ali, sentado sobre uma raiz retorcida, estava um homem idoso, que aparentava ter uma idade indefinível, tão antigo quanto as próprias montanhas. Trajava roupas simples, mas seu olhar trazia a profundidade de alguém que compreendia o passar das estações e os segredos do coração humano. Elias aproximou-se, curioso e hesitante. O ancião sorriu de modo acolhedor e disse:

— Vejo em seus olhos, rapaz, o conflito entre o que você é e o que acredita que deve ser. Percebo a beleza daquilo que deseja expressar, mas sinto também o temor que o acorrenta. Por que sufocas tua própria essência?

Elias sentiu o rosto corar. Nunca havia falado sobre isso com ninguém. Antes que pudesse responder, o ancião prosseguiu:

— Meu nome é Ismael. Ando de terra em terra, ouvindo os sussurros do vento e aprendendo com os seres vivos. Observe aquele pássaro — disse, apontando para um pardal que cantava em um galho mais alto. — Ele canta sua melodia única todos os dias, sem se perguntar se é o canto mais belo da região. Ele celebra sua liberdade cantando, honrando o que é, e assim expressa sua essência. Por que o ser humano hesita tanto em fazer o mesmo?

A pergunta ecoou dentro de Elias. Ele percebeu a simplicidade da comparação: um pássaro não questiona se sua canção agrada a todos, nem procura se conformar a um padrão. O pássaro simplesmente canta. O jovem entendeu, naquele instante, que seu silêncio interior era como uma prisão invisível que ele mesmo ajudava a manter. Faltava-lhe coragem para celebrar sua liberdade.

Nos dias que se seguiram, Elias passou a voltar à praça para conversar com Ismael. Sentavam-se sob o carvalho, observando as pessoas passarem. Algumas carregavam cestos pesados, outras iam às barracas do mercado, algumas falavam sobre o tempo ou sobre a colheita. Poucos, no entanto, pareciam realmente felizes com a vida que levavam. Vê-los assim reforçava em Elias a ideia de que viver conforme expectativas alheias não trazia alegria duradoura. Ismael falou-lhe sobre a importância de ouvir a voz interior, a chama da verdade que habita cada indivíduo. Disse-lhe:

— Celebrar a liberdade é um ato diário, meu jovem. Não se trata apenas de poder ir e vir, mas de expressar aquilo que se é, sem máscaras, sem temores. Quando honramos nossa verdade, respeitando quem somos no mais íntimo, experimentamos uma leveza na alma. Cada gesto, pensamento e palavra que brota dessa autenticidade torna-se um tributo à vida. É então que floresce a verdadeira comunhão entre as pessoas, pois, sendo fiéis a nós mesmos, aprendemos a respeitar a diversidade e a dignidade de cada ser.

Essas palavras iam marcando Elias profundamente. Ele compreendia que a liberdade não se restringia à ausência de prisões físicas. Havia também as grades invisíveis dos costumes, do medo de rejeição e da necessidade de aprovação. Percebeu que as esculturas que fazia em segredo eram seu grito silencioso de autenticidade, mas que não bastava apenas criar no escondido. Era preciso viver a essência também no dia a dia: falar sobre o que acreditava, vestir-se da forma que lhe agradasse, cantar suas canções, ainda que não fossem bem compreendidas.

Certo entardecer, Elias tomou coragem. Levou para a praça uma de suas esculturas mais ousadas: uma figura humana alada, com feições que lembravam pássaros e braços erguidos para o céu. A obra não era convencional: as proporções não eram realistas, as linhas seguiam uma lógica interior, quase um sonho esculpido em madeira. Ao colocá-la sob o carvalho, as pessoas que passavam estranhavam, franzindo o cenho e murmurando, confusas. Alguns perguntavam: “O que é isso? Para que serve?” Outros riam, achando a peça excêntrica. Elias sentia um frio na barriga, mas permaneceu firme. Olhou para Ismael, que estava sentado mais afastado, e viu-o sorrir com aprovação silenciosa. Aquilo lhe deu forças.

Um dos anciãos da aldeia aproximou-se, um tanto contrariado:

— Elias, o que você traz aqui? Essa escultura não segue as tradições. Não compreendo seu significado. Não seria melhor talhar as figuras que todos conhecemos e admiramos, como animais do campo ou utensílios úteis?

Elias respirou fundo. Ali estava a oportunidade de expressar sua verdade:

— Esta escultura, meu caro, não segue nenhuma forma conhecida porque representa a liberdade de ser quem se é. Representa o vôo da nossa essência para além dos limites visíveis. Ela não precisa se encaixar na lógica do uso prático, porque seu valor está em expressar algo interior, uma verdade que não pode ser contida em formas previsíveis. Esta peça sou eu celebrando minha própria voz, meu próprio canto, ainda que muitos não o entendam.

A reação não foi imediata. Alguns riram, outros ficaram perplexos. Mas houve aqueles que, olhando mais detidamente para a obra, perceberam algo diferente. Uma moça tímida sentiu um calor reconfortante no peito, pois também guardava em si ideias que nunca ousara exprimir. Um homem mais velho, acostumado a nunca questionar as normas, sentiu uma curiosidade inesperada. Aos poucos, um murmúrio de reflexão percorreu a praça, como se o estranho entalhe de Elias abrisse uma porta invisível na mente coletiva.

Na tarde seguinte, Elias trouxe uma segunda peça: um rosto com expressões mescladas de alegria e dor, liberdade e fragilidade. Novamente, a reação foi mista, mas já não tão hostil quanto antes. Algumas crianças se aproximaram, intrigadas, e perguntaram o significado. Elias respondeu:

— Significa que na jornada da vida carregamos muitas emoções. Somos criaturas complexas, e isso é parte da nossa beleza. Honrar nossa verdade é também aceitar cada sentimento, cada nuance, sem medo de parecer diferente.

Com o passar dos dias, a praça foi se tornando um espaço de curiosidade e diálogo. Mais do que apenas julgar a estranheza das peças, as pessoas começaram a perguntar-se o que elas representavam interiormente. Esse questionamento levou alguns a se lembrarem de seus próprios desejos não realizados, de sonhos abandonados e opiniões silenciadas. Aos poucos, e sem que ninguém desse ordens ou decretos, a atmosfera em Arandis começou a mudar. Algumas pessoas passaram a trazer seus próprios experimentos: músicas não convencionais, poesias livres, bordados com temas incomuns. Houve quem expressasse novas ideias sobre a forma de compartilhar o fruto das colheitas, ou sugerisse novas maneiras de construir as casas, valorizando a criatividade e a colaboração.

Elias não se tornara um líder no sentido tradicional, mas seu ato de apresentar algo fiel à sua essência inspirou um movimento sutil, uma espécie de libertação interior na comunidade. Ismael, observando de longe, sorria com ternura, pois reconhecia no processo a essência da liberdade: quando uma só pessoa tem a coragem de expressar sua verdade, abre caminho para que outras façam o mesmo. Esse florescer de autenticidade criou laços mais profundos entre os aldeões, pois, agora, não apenas respeitavam as diferenças, mas celebravam-nas.

A celebração da liberdade, assim, tornou-se um hábito diário. Não era mais preciso que todos cantassem a mesma melodia ou entalhassem a mesma figura. Havia espaço para o diverso, o singular, o inusitado. O amor cristão, o respeito e a comunhão tornaram-se valores concretos, vivenciados no cotidiano, pois ninguém mais precisava esconder sua essência. Celebrar a liberdade não era gritar contra correntes visíveis, mas simplesmente honrar a própria verdade interior e ter a coragem de expressá-la, reconhecendo a dignidade única de cada ser humano.

Antes de partir, Ismael chamou Elias sob o carvalho e disse-lhe:

— Agora você compreende, jovem. A liberdade não é um presente a ser recebido de outrem, mas algo a ser cultivado a partir do nosso interior. Todos os dias, quando acordares, lembra-te: honra tua verdade, expressa tua essência. Assim, celebrarás a liberdade em cada gesto, em cada criação, e esse exemplo irradiará sobre aqueles ao teu redor, como o sol nascente, trazendo luz às almas adormecidas.

Elias agradeceu com lágrimas nos olhos. Sabia que o caminho não seria sempre fácil; nem todos entenderiam suas criações, nem todos aprovariam suas escolhas. Mas isso não importava tanto quanto antes. Ele sabia que a essência da liberdade era ser verdadeiro consigo mesmo, e só assim poderia contribuir para uma comunidade mais autêntica, onde o diálogo, o respeito e o amor mútuo conduzissem à harmonia.

Ao partir, Ismael desapareceu na estrada poeirenta, mas deixou atrás de si um campo fértil de ideias brotando nos corações. Elias continuou seu trabalho de escultor, mas agora a praça era um lugar de partilha, arte, poesia e vida. Em Arandis, as pessoas passaram a entender que celebrar a liberdade diariamente, honrando a própria verdade, era o caminho para expressar a essência mais profunda, construir comunhão e aproximar-se do Amor que transcende fronteiras.

Assim, o ensinamento ecoou pelos vales e montanhas: “Celebre a liberdade todos os dias, honrando sua verdade e expressando sua essência.” E nessa celebração cotidiana, a fé, a cultura e a vivência prática do amor cristão se entrelaçaram, criando uma comunidade mais iluminada e inspiradora para todos.

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